O que Paulo quis dizer com "nós temos o Espírito, por que a Letra"?
Eu já ouvi essa justificativa de um amigo próximo, quando discutíamos sobre a validade da Torah. O que geralmente ouvimos é que enquanto nos tempos antigos eles só tinham a "letra", agora temos o “Espírito” para nos conduzir à verdade. É como a diferença entre uma máquina de escrever e um computador: quem iria querer voltar?
Para tentar justificar esse argumento, versículos como 2 Cor 3: 6 são citados: “Porque a letra mata, mas o Espírito vivifica”. Paulo estava ensinando que uma nova era do Espírito havia chegado na qual o texto sagrado da Escritura (a letra - Lei) não era mais importante. O que exatamente ele pretendia com esse contraste entre letra (Lei) e Espírito?
Quatro vezes nas cartas de Paulo ele contrasta a letra e o Espírito: duas vezes em Romanos e duas vezes em 2 Coríntios. Vamos olhar mais atentamente cada uma dessas à medida em que buscamos compreender o verdadeiro significado.
Romanos 2:29
Mas ele é um judeu interiormente; e circuncisão é aquela que vem do coração, pelo Espírito, não pela letra; e seu louvor não vem dos homens, mas de Deus. Temos o Espírito, quem precisa da letra?
O contexto
O contexto desse versículo é a exortação de Paulo a alguns dos membros judeus da congregação em Roma, que aparentemente estavam contando com sua linhagem como judeus para serem justificados perante Deus. Desde que Deus fez uma aliança com Israel, e desde que os profetas descreveram Israel como "todo justo" (Isaías 60:21), aqueles que eram membros da aliança (circuncidados) se consideravam justificados aos olhos de Deus porque eram judeus. Paulo argumenta que ser judeu requer mais do que a linhagem física; envolve mais do que a circuncisão da carne (o sinal externo da aliança), mas envolve também a circuncisão do coração. O homem olha para fora, mas Deus olha para o coração. Afinal, a Torah estabelece como punição para o incircunciso ser excluído de seu povo, já que agia em rebelião contra Deus, não mais permanecendo membros da aliança.
Paulo certamente tinha em mente os versículos da Tanakh (Antigo Testamento) onde a circuncisão é definida como tendo efeito no coração:
Então circuncide seu coração e não seja mais teimoso. (Deut 10:16)
Além disso, o Senhor seu Deus irá circuncidar o seu coração e o coração de seus descendentes, para amar o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração e de toda a tua alma, para que você possa viver. (Deut 30: 6)
Circuncide-se ao Senhor e remova os prepúcios do vosso coração, homens de Judá e habitantes de Jerusalém; do contrário, a minha ira avançará como fogo e queimará sem ninguém para apagá-lo, por causa do mal de suas ações. (Jer 4: 4)
A partir dessas referências em que o ato físico da circuncisão é usado metaforicamente para indicar um verdadeiro coração de fé, os seguintes entendimentos podem ser derivados: Primeiro, um coração circuncidado é o oposto de rebelião.
Um coração incircunciso é, portanto, caracterizado por rebelião contra Deus. Em segundo lugar, uma pessoa com um coração circuncidado é capaz de amar a Deus com seu coração e alma (vivendo o Shema - a declaração de fé de Israel encontrada em Deut 6: 4-9), indicando que um coração incircunciso é o oposto, ou seja, incapaz de amar a Deus, ou seja, incapaz de guardar Seus mandamentos.
Finalmente, aqueles que têm corações incircuncisos sofrem a pena de seus pecados; eles não foram perdoados. Um coração incircunciso é alguém ainda oprimido pelo pecado.
Mas como o coração é circuncidado? Não havia dúvida de como realizar a circuncisão física, mas como circuncidar o coração? As palavras de Ezequiel, profetizando o tempo em que o Israel disperso seria reunido, nos dá a resposta:
Então eu vou borrifar água limpa em você, e você ficará limpo Eu vou te limpar de toda a sua imundície e de todos os seus ídolos. Além disso, vou te dar um novo coração e colocar um novo espírito dentro de você; e eu irei remover o coração de pedra de sua carne e darei a você um coração de carne. Vou colocar meu espírito dentro você e fazer você andar nos meus estatutos, e você terá o cuidado de observar Minhas ordenanças. (Ez 36: 25-27)
Devemos observar cuidadosamente que este trabalho de circuncidar o coração é feito pelo Espírito. Isso é paralelo ao que Jeremias promete quando escreve:
“ Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias ”, declara o Senhor, “ Eu colocarei Minha Torah dentro deles e em seus corações Eu vou escrevê-la; e eu serei o Deus deles e eles serão meu povo. ” (Jer 31:34)
Aqui, a mesma linguagem de “coração” é usada. A Torah escrita em letras sobre pedra agora também está escrita no coração de Israel. O resultado é que esse anda na fidelidade à aliança.
Como, então, Paulo está contrastando a letra e o Espírito neste versículo?
Ao falar para os judeus que acreditavam que sua condição de membro da aliança seria segura devido à sua linhagem física, Paulo os lembra que um judeu que é um verdadeiro membro da aliança é circuncidado no coração, bem como em carne. Um coração circuncidado é aquele em que o a Torah está escrita; uma "escrita" que só pode ser realizada pelo Espírito de Deus. Se as letras da Torah permanecerem nas tábuas que Moisés trouxe da montanha e não forem escritos no coração, eles nunca trarão a realização da aliança. Certamente os rituais externos que eles recomendam podem trazem o louvor dos homens, mas Deus olha para o coração. Só aqueles que têm as letras escritas no coração pelo Espírito, ou seja, suas vidas são governadas por aquelas letras da Torah, receberão as bênçãos da aliança e podem, portanto, serem corretamente chamados membros da aliança.
“ Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias ”, declara o Senhor, “ Eu colocarei Minha Torah dentro deles e em seus corações Eu vou escrevê-la; e eu serei o Deus deles e eles serão meu povo. ” (Jer 31:34)
Paulo não está contrastando a letra e o Espírito como se um fosse mau e o outro bom. Pelo contrário, ele está ensinando que a letra à parte da obra do Espírito não pode trazer a bênção.
A letra (Lei) deve ser escrita no coração (uma obra que só o Espírito pode fazer) para que alguém seja membro da Aliança. Quando a Torah é escrita no coração pelo Espírito, o resultado é uma vida de fé e obediência. As bênçãos de Deus estão garantidas.
Romanos 7: 6
Mas agora fomos libertados da Torah, tendo morrido para aquilo ao qual estávamos vinculados, de modo que servimos em novidade de Espírito e não na obsolescência da letra
O contexto
Paulo usou a analogia de uma aliança de casamento. Enquanto marido e mulher estão vivos, eles estão ligados um ao outro pelas estipulações dessa aliança. Se o marido morrer, no entanto, as estipulações do convênio do casamento que vinculam a mulher ao marido não mais valem e ela está livre para casar-se novamente. Mas Paulo não está nos dando um tratado sobre a lei do casamento. Ele está usando a aliança de casamento como uma ilustração adequada de seu ponto central: a jurisdição legal é quebrada quando uma pessoa morre. As estipulações da aliança de casamento não podem mais ser aplicadas quando um membro do casamento não está mais vivo.
É importante entender como essa analogia se encaixa no ponto principal dessa passagem. Ele já ensinou que o crente em Yeshua morreu com Ele e ressuscitou para uma nova vida (6: 3-7). O crente morreu vicariamente, já que Yeshua morreu em seu lugar. Deus considera a morte de Yeshua como se fosse a morte do próprio pecador. Tendo em vista que nós morremos com Yeshua, a morte decretada pela Torah como consequência do pecado não mais nos condena. É importante entender que não é a Torah que morreu, mas é o pecador que morreu no Messias. Paulo deixa isso claro:
O que devemos dizer então? A Torah é pecado? Nunca! Pelo contrário, eu não teria sabido do pecado, exceto através da Torah. (Romanos 7: 7)
Assim, tendo morrido com Yeshua, aquele que estava ligado (casado, na metáfora) ao pecado agora está livre para se unir a outro, isto é, ao Messias (7: 4). A condenação da Torah, que é prescrita como o salário do pecado, não pode mais ser administrado. Aquele que está unido ao Messias nunca mais precisa ter medo de que a justiça de Deus, administrada por meio da Torah, possa condená-lo.
É nessa linha de pensamento que Paulo traz o contraste entre letra e Espírito. Enquanto a Torah funciona apenas como um código de lei sem a capacidade de mudar o coração, só poderia condenar; nunca poderia trazer vida. Mas uma vez que o coração é transformado de pedra a um coração de carne, haja vista que o Espírito escreveu a Torah no oração, então a obediência pela fé torna-se a vida do crente. Assim, a "obsolescência da letra" é a caracterização de Paulo da vida vivida à parte da obra interior do Espírito que escreve a Torah em nosso coração. A "letra antiga" é a Torah sem o Espírito.
Por outro lado, a "novidade de Espírito" fala da novidade da Torah como está escrita no coração pelo Espírito. Paulo sabia disso em primeira mão. Em 7: 9 ele escreve:
Eu já vivi separado da Torah; mas quando o o mandamento veio, o pecado tornou-se vivo e eu morri;
Podemos perguntar com razão: "Quando Paulo estava vivo separado da Torah '? Toda a sua vida foi envolvida pela Torah desde sua juventude. Como Paulo pode dizer que já vivei à parte a Torah? Não apenas isso, mas ele confessa que o “mandamento veio”, significando que houve um tempo em sua vida em que o mandamento ainda não havia chegado. Isso é possível para o “fariseu dos fariseus”? A resposta, claro, é sim! Mas o que isso significar? Seu significado possivelmente é que houve um momento na vida de Paulo em que a Torah era apenas “letra”, sem a obra do Espírito.
Estava lá escrita em pergaminho com tinta em toda a sua beleza. Mas eram apenas letras em pergaminho. Seu coração não havia mudado. Mas quando Deus, em Seu poder soberano, colocou Seua mor sobre Paulo, Ele escreveu em seu coração aquela mesma Torah que Paulo tinha lido em pergaminhos. Em seguida, a Torah começou seu trabalho de mudança de vida - " o mandamento veio."
Até então, Paulo estava “vivo” - nada estava errado. Ele foi elogiado pelos homens como um dos mais zelosos pela Torah. Ele se achava irrepreensível”(Filip 3: 6). Porém, quando o Espírito escreveu a Torah em seu coração, seu pecado se tornou totalmente conhecido e Paulo morreu. Ele morreu para si mesmo e para o pecado. Essa mudança de vida jamais poderia ter acontecido enquanto a Torah permanecia como letras em pergaminho – tinha que ser escrita no coração pelo Espírito.
Assim, a “novidade de Espírito” refere-se à nova obra da Torah, quando escrita no coração pelo Espírito.
2 Coríntios 3: 6 e 3: 15-17
Que também nos tornou adequados como servos de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito vivifica. Temos o Espírito, quem precisa da letra?
O contexto
Paulo estava enfrentando um desafio envolvendo suas credenciais ao escrever para a congregação coríntia. Aparentemente, houve aqueles que discordaram do ensinamento de Paulo e sugeriram que ele não teria as credenciais adequadas (talvez ordenação rabínica adequada?) para instruir a comunidade de Corinto na Torah.
Paulo rebateu mencionando os próprios coríntios como sendo suas credenciais. Ele não estava dependendo de cartas escritas com tinta, mas da mudança de vida dos membros da congregação. Uma mudança advinda como resultado de terem recebido o evangelho que Paulo havia pregado. A Torah foi escrita em seus corações pelo Espírito de Deus, e isso resultou em uma genuína mudança de vida. Esta mudança evidente foi a prova de que a mensagem do Evangelho dada por Paulo e recebida pelo coríntios foi autêntica, pois Paulo havia sido usado por Deus para trazer justiça em suas vidas.
Aqueles que se opunham a Paulo, no entanto, pregavam um evangelho diferente. O que exatamente eles estavam ensinando não se sabe ao certo, mas pode-se imaginar que ensinando legalismo, ou seja, tornar-se judeu para fazer parte da Aliança. Sendo assim, gentios teriam que se submeter à cerimônia de conversão ao Judaísmo. Eles estavam ensinando que Moisés foi o suficiente; Paulo estava dizendo que Moisés apontou para o Messias. É neste contexto que Paulo compara seu ministério com o de Moisés. Todos concordariam que Moisés tinha impecável credenciais: Ele foi escolhido por Deus e recebeu a Torah escrita pelas mãos de Deus.
Como poderia alguém achar que o ministério de Paulo pode ser comparado ao de Moisés? Os critérios de Paulo para a comparação foram as pessoas afetadas pelo ministério de cada um. Quão obedientes a Deus foram as pessoas que Moisés liderou? O efeito do ministério de Paulo foi superior, pois Israel foi caracterizada por sua rebelião sob a liderança de Moisés; de todos os homens adultos que cruzaram o Mar Vermelho durante a grande redenção do Egito, apenas Josué e Caleb conseguiram entrar na Terra prometida.
Então, o que fez a diferença? Paulo e Moisés foram divinamente chamados para seus ministérios. E ambos pregaram a mesma mensagem - o Evangelho que apontava para a fé no Messias. Por que então o ministério de Paulo foi eficaz em trazer pessoas para fé, enquanto o ministério de Moisés não foi (pelo menos quando se considera as ações de Israel como um todo)? A diferença, na perspectiva de Paul, era a presença de um véu. Quando Moisés desceu da montanha, ele havia estado face a face com Yeshua. Ex 24:10 deixa claro que Moisés, Arão e os anciãos que estavam com eles “viram o Deus de Israel. ” A manifestação visível de Deus, sob o ponto de vista de Paulo está sempre atrelada ao Messias. Então, quando Moisés entrou na nuvem, ele falou face a face com o Filho de Deus. Isso foi, portanto, a glória de Yeshua que estava brilhando em seu rosto quando ele desceu da montanha, e a glória de Yeshua que foi velada para que as pessoas não a vissem. Paulo usou Moisés para se referir à Torah ("Mas até hoje, sempre que Moisés é lido ... ”2 Coríntios 3:15). Apesar de podermos ver a glória de Yeshua na Torah, quando essa está velada, Yeshua está escondido. Esse mesmo véu também cobre os corações daqueles que não enxergam Yeshua na Torah:
Temos o Espírito, quem precisa da carta?
Mas até hoje, sempre que Moisés é lido, um véu permanece sobre seu coração; mas sempre que uma pessoa se volta para o Senhor, o véu foi retirado. (vv. 15-16) O véu é a ausência da obra do Espírito em conexão com as Escrituras. Quando o Espírito torna as Escrituras vivas por escrevê-las em nosso coração, Yeshua não está mais velado nelas; Ele é visto claramente.
Mais uma vez, a questão é uma questão de coração. Quando a Torah permanece como letras em pedra ou pergaminho, não tem poder para transformar. Quando vista como letras sem a obra vivificante do Espírito, o Evangelho na Torah que aponta para Yeshua está velado. Somente o Espírito pode remover o véu escrevendo a Torah em nosso coração. Certamente Paulo não está diminuindo as palavras inspiradas de sua Bíblia, a Torah! Quando o véu é retirado e Moisés é lido pela obra do Espírito escrevendo-a no coração, então Yeshua não é apenas visto, mas também abraçado pela fé. As mesmas letras gravadas na pedra são escritas no coração pelo Espírito. Paulo é consistente com seu uso da letra e do Espírito. Aqui, como em Romanos, as letras nas pedras ou pergaminhos cumprem sua missão de condenação. Eles condenam o pecador. Apenas quando as letras da Torah eterna são escritas no coração – quando o véu é retirado de Moisés pela obra soberana do Espírito - só então a glória de Yeshua brilhará nas letras da Torah. E quando esta glória é vista através dos olhos da fé, a vida eterna é o resultado inevitável.